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A Casa que se Abre: Ana Maria Gonçalves inaugura novo capítulo na Academia Brasileira de Letras

Em um dos marcos mais significativos da cena cultural nacional, a escritora Ana Maria Gonçalves torna-se a primeira mulher negra a ocupar assento na Academia Brasileira de Letras (ABL). A conquista representa não apenas um reconhecimento individual da autora, mas também um momento de inflexão histórica para uma instituição que por décadas refletiu exclusão e homogeneidade.

A trajetória de Gonçalves tem raízes profundas: nascida no interior de Minas Gerais, a autora construiu sua carreira com obras que mergulham na história do Brasil a partir de uma perspectiva afro-brasileira, dando voz àqueles que muitas vezes foram silenciados. Seu romance mais conhecido, marcado por pesquisa rigorosa e narrativa potente, consolidou-se como leitura essencial para compreender a formação do país e o legado da escravidão.

Assumir a cadeira número 33 da ABL — antes ocupada por figuras clássicas da filologia e da gramática — é mais que uma formalidade acadêmica; simboliza a exigência de revisão de um cânone literário que, durante longos anos, ignorou a pluralidade racial e de gênero. Gonçalves, além de ocupar esta posição, declara-se comprometida com a missão de ampliar a representatividade e convidar outras vozes historicamente invisibilizadas a se aproximarem desse espaço.

O discurso de posse revela uma consciência firme: ao invocar sua ancestralidade, ao relembrar os nomes das mulheres que, embora presentes, encontraram barreiras de entrada, Gonçalves reconfigura o momento para além do simbólico. “Estou aqui porque muita gente não pôde estar”, declarou, reconhecendo que sua cadeira representa também a abertura de caminho para quem virá em seguida. Mais do que a chegada de uma escritora, o gesto aponta para o compromisso de se fazer justiça cultural.

Dentro da ABL, o cenário agora se mostra simultaneamente tradicional e em renovação. A manutenção das funções clássicas da instituição — zelar pela língua, pela literatura, pela memória — permanece, mas o marco da entrada de uma mulher negra sinaliza um desejo de mudança estrutural: a da Casa de Machado de Assis que passa a abraçar a pluralidade do Brasil real.

Para o mercado editorial e para o universo literário, a presença de Gonçalves no círculo dos “imortais” amplia os horizontes não apenas simbólicos, mas concretos: sua eleição incentiva maior atenção às obras de autores negros, estimula editoras a diversificar catálogo e reforça a importância de um público leitor consciente de sua própria multiplicidade. Essa virada cultural será medida no que se segue: quantos livros ganharão circulação, quantas vozes vindouras sentirão o impulso de ocupar lugares antes bloqueados.

Mais do que mérito pessoal, esta vitória assume caráter coletivo. O feito de Gonçalves se converte em um convite à sociedade para refletir sobre quem constrói, quem decide, quem permanece à margem. Na Casa que resiste desde o final do século XIX, agora há uma batida nova — aquela de uma mulher negra que não chega para fechar ciclo, mas para abrir veredas.

Se a literatura transforma vidas, a presença de Ana Maria Gonçalves na ABL reafirma que transformar instituições também é ato literário — palavra que forma, palavra que liberta, palavra que expande. A nova imortal leva no fardão não somente uma trajetória, mas o futuro de várias narrativas que ainda aguardam lugar à mesa.

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